quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Capitulo III

Hevelin estava realmente inconformada com tudo aquilo que aconteceu ali, naquele penhasco. Não admitia errar sob hipótese alguma, e aquele confronto com aqueles gorilas mostrou algumas de suas falhas que poderiam muito bem acontecer em possíveis combates futuros. Como duelista que era, ela bem sabia que tinha muitas limitações em sua força física, e por isso mesmo aprendera que todo duelista buscava maximizar as técnicas físicas usando a Força Arcana, tudo baseado mais em velocidade e agilidade. Entretanto, naquele momento, ela sabia que tinha cometido uma falha enorme em querer combater aqueles gorilas tentando usar força física. Foi um erro de sua parte, e por isso Hevelin mostrava aquele semblante sério, aquele olhar inerte. Não mais socava a neve com murros. Seus punhos haviam se cerrado energicamente. Mehldrik insistiu na pergunta:
- Você está bem? – Mehldrik mantinha certa distância, e apenas buscava obter de Hevelin qualquer resposta.
- Estou bem, não se preocupe. – respondeu Hevelin de maneira um tanto áspera.
- O que uma pessoa como você faz em um lugar tão ermo e distante como essas montanhas? – perguntou Mehldrik de maneira despretensiosa, enquanto guardava seu orbe em seu alforje.
- Estou em uma missão...
- Olha, eu tenho aqui comigo um pouco de carne de pantrocorne, se você estiver com...
- Não tenho fome. – interrompeu Hevelin, sem deixar que Mehldrik terminasse sua frase.
- Tudo bem. – Mehldrik decidiu não continuar mais com o diálogo, pois percebeu que Hevelin não estava em seu melhor momento para trocar palavras com outra pessoa.
Hevelin aparentemente não estava disposta a muita conversa. Aquela duelista, de longos cabelos negros e pele morena levemente bronzeada pelo sol intenso de desertos distantes, mostrava ter um temperamento forte e ser um pouco arredia em determinados momentos. Permaneceram durante um certo tempo ali, sentados, em silêncio, enquanto a nevasca havia dado uma trégua e os ventos diminuído de intensidade. Mehldrik então decidiu levantar e preparar-se para seguir sua jornada, pois começou a sentir certo arrependimento em ter ajudado aquela duelista, que nem ao menos disse seu nome ou sequer agradeceu por tê-la salvo. Aprumou-se e estava prestes a descer a colina quando Hevelin resolveu enfim falar.
- Ei, você!... Olha, me desculpe por eu ter sido tão rude, é que existem momentos que me irritam profundamente, e eu sinto uma raiva intensa...
- Tudo bem, quanto a isso, não se preocupe. Essas coisas acontecem, e ninguém é perfeito o suficiente que já não tenha cometidos seus erros de vez em quando.
- Eu sei... – Hevelin parecia estar procurando as palavras certas para explicar o que pensava sobre aquilo tudo que aconteceu. – Mas é que essa situação toda, esses gorilas me atacando, diabos! Eu quase morri nesse penhasco, e se você não tivesse aparecido, eu nem sei o que teria acontecido comigo. Não é possível! Eu devo ter feito algo errado, como eu pude deixar aqueles monstros me atacarem com tanta facilidade! Eu odeio quando eu cometo erros! – Hevelin parecia estar ficando nervosa novamente.
- Calma. Como eu já te disse, todos somos passíveis de errar. Foi uma situação ocasional, e tenho certeza de que da próxima vez você estará melhor preparada para enfrentar outras ameaças. – dito isso, Mehldrik percebeu que Hevelin estava se acalmando. – Olha, como eu te falei antes, eu tenho um pedaço de carne de pantrocorne aqui. Caso esteja com fome, posso assar um pouco para a gente.
Hevelin dessa vez consentiu afirmativamente com a cabeça, considerando agora a possibilidade de fazer uma breve pausa em sua caminhada para descansar um pouco. E apesar de ter feito o convite, Mehldrik ainda considerava todos aqueles contratempos ocorrido fatores que poderiam complicar sua missão de encontrar e resgatar Skaild, então não podia se dar ao luxo de fazer paradas imprevistas, e decididamente aquela era uma parada não programada por ele. Tratou então de ser ágil e encontrou ali perto um lugar onde poderiam descansar e fazer uma pausa em suas jornadas. Em pouco tempo, a carne já crepitava sobre as chamas de uma fogueira, e o calor da mesma aquecia os dois jovens guerreiros. E logo ambos, Melhdrik e Hevelin, já haviam se apresentado um ao outro, e agora buscavam saber um pouco mais sobre ambos.
- Então quer dizer que você veio do Continente de Huan. E o que realmente faz você perdida aqui nessas regiões geladas de Tundra Infame?
- Inicialmente, eu fui solicitada pelo Oficial Dunhike, do condado do Deserto da Lamentação, para investigar uma série de desaparecimentos que tem ocorrido durante muito tempo em diversos continentes de Nevareth. Já estive em outro condado há algum tempo atrás no Continente de Pastur, onde ajudei nas buscas pelos desaparecidos. Até os próprios grupos de expedição e busca começaram a desaparecer de maneira estranha. Eu investiguei os locais dos desaparecimentos, e as únicas pistas que foram encontradas apenas apontavam para o fato de que ocorreram combates e resistência por parte das vítimas, mas nada explicava os motivos reais dos desaparecimentos.
- Eu sei perfeitamente sobre esses desaparecimentos estranhos. Meus pais sumiram misteriosamente quando eu era criança e até hoje nunca foram encontrados. – Mehldrik sentiu um gosto meio amargo na boca ao contar um pouco de sua história de vida, mesmo que em poucas palavras. Raramente ele contava a alguém sobre sua vida ou sobre o desaparecimento de seus pais. E esse era um daqueles raros momentos.
- Sinto muito pela sua família, Mehldrik...
- Eu já me acostumei há muito tempo com a situação, e tento conviver com isso, apesar de nunca terem conseguido descobrir como e porque eles desapareçam. E você está aqui em Tundra Infame tentando ajudar a desvendar essa situação? Pergunto isso porque continuo achando estranho ter encontrado somente você aqui nas montanhas.
- Como eu havia dito, inicialmente vim para cá a pedido do Oficial Dunhike para investigar os desaparecimentos ocorridos aqui no continente de Midreth e colher mais pistas e informações que eu pudesse sobre esses desaparecimentos. Até agora, tudo o que temos foi minuciosamente pesquisado e examinado pelo Capitão Mark.
- Capitão Mark? – perguntou Mehldrik, com certo espanto.
- Sim, isso mesmo. Você o conhece?
- Sim, eu o conheci quando ele esteve aqui numa reunião com os líderes da região sobre os desaparecimentos. Cheguei a conversar com ele um pouco, só que ele não disse as respostas que eu queria ouvir, apenas me explicou que sobre os desaparecidos, enquanto estiverem vivos, nunca poderão voltar e que o paradeiro deles tem possível relação com um demônio estranho que em breve se revelará. Achei as explicações dele tão misteriosas e malucas quanto os desaparecimentos. Eu não acredito em nenhuma explicação dele.
- Mas acredite, Mehldrik, o Capitão Mark é um exímio especialista em monstros, e todos em minha terra respeitam ele, que é quase como um líder local. Eu o visitei por diversas vezes em sua casa, uma habitação perdida no meio do deserto, construída há tempos na curva de uma estrada que fica há alguns quilômetros de um secular cemitério. Ele também me disse sobre aqueles que desapareçam e que não poderão mais voltar. E me alertou sobre os ventos do caos que estão soprando, o caos que chama por sangue e sobre os heróis que possuem esse sangue. Segundo ele próprio me disse, agora, nos céus de Nevareth, as estrelas dos heróis estão bem no alto e se movem em direção aos seus próprios caminhos.
- Ele me disse algo parecido também, e também me disse com um olhar enigmático que em breve me veria novamente. Aquele olhar dele chegou a me apavorar um pouco, mas eu sou descrente por tudo o que ele me disse. Não consigo aceitar as idéias dele, simplesmente não consigo aceitar, é absurdo.
Mehldrik estava se expondo um pouco mais com suas palavras. A convicção dele em não querer acreditar nas explicações do Capitão Mark residia justamente no fato de que ele ainda tinha esperanças de encontrar seus pais, de poder revê-los, poder abraçá-los. Logo, se o Capitão Mark dizia que aqueles que se foram jamais poderão voltar, Mehldrik renegava essa teoria de maneira veemente. Hevelin achou melhor não aprofundar muito aquela discussão, pois começou a perceber que as opiniões de Mehldrik a respeito do Capitão Mark eram diferentes das suas. Então prosseguiu cautelosamente com suas explicações a respeito de sua missão.
- Quando eu cheguei aqui no continente, eu fui informada de que a Guilda dos Ladrões havia debandado para estas regiões, e que após as autoridades descobrirem isso, vários tipos de crimes começaram a ocorrer por aqui, deixando várias comunidades temerosas com a situação.
- Esses malditos têm agido com certa freqüência realmente. – acrescentou Mehldrik - Um grupo de comerciantes que chegou a Tundra Infame recentemente está sendo vitimados por ataques repentinos, e as mercadorias que eles roubam estão sendo armazenadas em algum local das Montanhas de Vahour. E segundo o que se sabe, um homem chamado Kashu estaria liderando esses roubos, com a clara intenção de desestabilizar a economia da região e do Porto de Hebrat, um dos mais movimentados em atividades comerciais daqui da região.
- Antes de sair em missão, eu soube que o Porto havia paralisado suas atividades devido aos roubos, que se tornaram mais constantes ainda. E foi por causa dessa situação de caos provocada pela Guilda dos Ladrões que o Oficial Henkoff, daqui do condado de Tundra Infame, solicitou minha ajuda para tentar descobrir onde seria o possível local onde as mercadorias estariam sendo escondidas.
- O Oficial Henkoff enviou você para esta missão? – indagou Mehldrik, com certo espanto.
- Sim. Por que?
- Por nada. Henkoff é meu padrinho, ele que me acolheu e criou eu e meu irmão depois que meus pais desapareceram. – explicou Mehldrik de maneira breve, dando sinal de que não queria realmente expor muito sobre sua vida pessoal. Achava que já tinha contado muito além do necessário.
- Henkoff é seu padrinho. Que coincidência. Mas porque você fez essa cara de espanto quando eu disse que ele me enviou nessa missão?
- Não fiquei espantado. É que pouco antes de sair do condado, meu padrinho havia me explicado que possivelmente reuniria um grupo de busca para investigar esses roubos e tentar descobrir o local onde as mercadorias estariam sendo escondidas. Eu só nunca imaginaria que, ao invés de um grupo de busca equipado, ele resolvesse enviar apenas você.
Agora o olhar de espanto partia do rosto de Hevelin. Provavelmente ela tenha entendido errado as palavras de Mehldrik, ou ele possivelmente tenha se expressado mal, mas naquele momento, ela se sentiu um pouco ofendida com o que ele havia dito. E não demorou a retrucar a afirmação de Mehldrik.
- O que você quer dizer com isso? Que eu não tenho capacidade para realizar esta missão? Afinal de contas, quem você pensa que é para falar uma coisa dessas?
- Hevelin, você não entendeu o que eu quis dizer. – Mehldrik percebeu certo nervosismo no tom de voz de Hevelin, ao mesmo tempo em que o rosto dela assumia uma expressão de desapontamento.
- Mehldrik, eu entendi direitinho o que você quis dizer.
- Hevelin, eu disse isso pelo fato de que você havia dito que odeia cometer erros, mas ainda assim você quase morreu naquele penhasco.
- O que? – Hevelin levantou-se prontamente, agora visivelmente irritada – Agora você realmente disse tudo o que queria realmente dizer! Você quer dizer que aquilo que ocorreu no penhasco apenas serviu para mostrar que não tenho competência para cumprir essa missão, não é?
- Hevelin, eu apenas estou tentando dizer que essa missão que lhe foi confiada pode ser perigosa demais para apenas ser realizada por uma pessoa somente. Meu padrinho deveria ter enviado um grupo de investigação maior.
- Você está apenas me dizendo que não acredita que eu tenha capacidade para a missão, é isso? – esbravejou Hevelin.
- Hevelin, por favor, diminua o tom de sua voz. Você vai acabar chamando a atenção de mais animais ferozes...
- Para o inferno você e os animais ferozes! Não admito que ninguém questione minha competência para realizar as missões que me são confiadas! Não admito mesmo!
Após dizer isso, Hevelin saiu a passos rápidos por entre as árvores, sem olhar para trás. Mehldrik agora realmente começava a achar que tinha sido um tremendo erro encontrar aquela duelista em seu caminho. Ela tinha uma personalidade forte e um temperamento instável, e parecia que não gostava que lhe apontassem seus erros. Mehldrik a chamou algumas vezes, perguntando para onde ela estava indo, mas ela simplesmente o ignorava. Ela descia com certa agilidade a encosta da montanha, seguido a certa distância por Mehldrik. Em determinado momento, ela saltou uma pedra e passou por um vão entre duas rochas. Mehldrik continuou seguindo-a, fazendo o mesmo trajeto. Porém, ao seguir na direção do vão, esbarrou subitamente em Hevelin, que estava estagnada à sua frente, imóvel. Ele olhou para frente e entendeu afinal o motivo verdadeiro pelo qual Hevelin havia parado.
Eles haviam acabado de encontrar alguns guerreiros da Guilda dos Ladrões.

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