sábado, 21 de fevereiro de 2009

Capítulo V

Muito distante daquelas montanhas geladas de Vahour e daquele clima nebulosamente congelante, no Continente de Huan, alguém vagava com passos lerdos através de um vasto deserto. O suor escorria insistentemente de seu rosto queimado pelo sol abrasador, enquanto seus olhos vislumbravam paisagens feitas de imensidões de dunas de areias, formações rochosas magníficas, ruínas abandonadas e oásis esquecidos. E apesar daquele lugar todo parecer estar derretendo há muito tempo com aquele calor fervente, sem dúvida nenhuma o Deserto da Lamentação era um imenso santuário de riquezas esquecidas. Em muitos pontos podia-se esbarrar em construções seculares arruinadas e quase sepultadas pelas tempestades de areia, que sempre assolavam a região. Entretanto, o deserto, mesmo mostrando-se uma paisagem fascinante, também trazia em sua natureza algo de traiçoeiro e perigoso. Muitos viajantes desprevenidos haviam perdidos suas vidas ao tentar desafiar aquela vastidão escaldante. E antes de deixar uma das cidades mais importantes daquele condado para trás, Vohldrik ouvira muitas histórias amaldiçoadas contadas por Cox, agente oficial que administra todos os armazéns e responsável pelo sistema de estocagem de mercadorias daquela cidade. Muitas dessas histórias falavam também sobre pessoas que desapareciam misteriosamente sem deixar qualquer pista que pudesse explicar seus sumiços. E muitos desses desaparecimentos eram semelhantes aos outros casos relatados nos outros continentes de Nevareth, inclusive em Midreth, sua terra natal. Vohldrik sempre pensava em tudo isso que estava acontecendo pelo mundo, e imaginava que essas ocorrências poderiam ser o início de algo muito maior que estava por vir em um futuro não muito distante. Atingiu o topo de uma duna, e então viu toda uma planície desértica diante de si, uma paisagem ampla, silenciosa, e perturbadoramente quente. Atendendo um dos conselhos do agente Cox, havia deixado alguns de seus pertences bem guardados no armazém da cidade, e iniciou aquela jornada apenas com o que era necessário. Sua armadura era, ao mesmo tempo, leve e resistente, e Vohldrik usava uma capa feita de couro das cobras gigantes existentes naquela região, que o protegia perfeitamente durante o dia contra os raios solares, e o aquecia durante a noite, quando a temperatura no deserto caía absurdamente, chegando a assemelhar-se às temperaturas das Montanhas geladas de Tundra Infame, o que não o incomodava muito, já que viera de daquelas terras cobertas de gelo e neve. Carregava sua montante e alguma comida numa bolsa de couro presa à sua cintura.
Apesar de sua estatura mediana e da pouca idade, Vohldrik havia conquistado o respeito e admiração de muitos na região onde nascera e crescera pela determinação e empenho com que vinha estudando as técnicas da Força Arcana, tornando-se um guerreiro incrível em tão pouco tempo e tão jovem ainda. Sua força física era desproporcional para seu tamanho e sua idade, e isso havia se tornado um grande mistério, sendo até mesmo motivo de pesquisas por parte de valorosos estudiosos das técnicas da Força Arcana nas terras de Tundra Infame.
Alguns dias de caminhada no deserto haviam deixado sua pele meio bronzeada, e Vohldrik pensava já estar quase perto de seu destino. E pelo visto, Cox havia previsto com exatidão o tempo que demoraria para ele chegar aonde queria. O sol já havia passado do ponto mais alto do céu e caminhava para o seu entardecer, quando Vohldrik, depois de descer por uma estrada que penetrava por um Vale, avistou uma edificação imponente esculpida e encravada ao pé de uma imponente formação rochosa. Daquele ponto, tinha-se uma magnífica vista de um enorme canyon, cujas passagens escondidas vistas de longe pareciam ser muito traiçoeiras e perigosas. Ficou um pouco aliviado de o seu destino final ser exatamente ali, em frente aquela construção cheia de arabescos arquitetônicos. A entrada mostrava enormes abóbadas no topo sustentadas por imponentes pilares. Ao lado desses pilares, enormes pedras esculpidas em formas arredondadas geometricamente em cones que apontavam para o céu azul. Vohldrik parou por um momento, observando toda aquela imponência. “Então é aqui a morada do Capitão Mark”, pensou consigo, enquanto tomava coragem para entrar.
Vohldrik conheceu o Capitão Mark pessoalmente apenas uma vez, quando o mesmo fez uma visita oficial em Tundra Infame, quando liderou uma comissão de investigação para colher informações a respeito dos desaparecimentos ocorridos por lá. Mas Vohldrik não chegou a conversar com ele, apenas o vira entrar na residência do Oficial Henkoff. Não fazia idéia de como se apresentaria, nem tampouco como eram as formalidades utilizadas diante de uma pessoa como o Capitão Mark, mas ele não se incomodava muito com isso. Para falar a verdade, ele nunca se incomodava muito com formalidades, era sempre espontâneo e sincero, e não escolhia muito aquilo que iria dizer. Ele era diferente de seu irmão mais velho, Mehldrik, que desde que seus pais desapareceram, havia se tornado mais reservado, mais fechado, uma pessoa pouco sociável e de poucas palavras. Vohldrik havia percebido essa mudança logo no início, pois quando crianças, eles eram sempre alegres, brincalhões e comunicativos com todos ao redor, principalmente com seus pais. Seu irmão, porém, havia mudado seu comportamento e se tornado um garoto calado e pensativo. Vohldrik era muito criança e não entendia direito o que se passava ao seu redor, mas Mehldrik já tinha idade suficiente para saber sobre tudo aquilo que queriam esconder dele.
Enquanto penetrava naquele lugar pouco iluminado em seu interior, formado por corredores labirínticos e estreitos, Vohldrik se lembrava de seu irmão agora distante. Havia partido sem lhe dizer para onde ia e qual o motivo de sua viagem, e mesmo assim Mehldrik o abraçou com firmeza, desejando toda sorte do mundo em sua jornada rumo ao distante continente. Essas lembranças o confortavam naquele momento, assim como o confortaram por toda sua jornada até ali. Finalmente Vohldrik encontrou o final daqueles corredores, atingindo um saguão com suas silenciosas paredes de pedra, iluminado pela luz de enormes lampiões pendurados no teto em diferentes alturas por correntes. No chão havia um enorme círculo com uma série de desenhos dispostos em arranjos geométricos bem definidos, feitos de pequeninas pedras polidas em cores diversas, variando do salmão desbotado ao marrom cor de terra. Do outro lado havia um portal em arco. Empurrou aquelas portas, e deparou-se numa grande biblioteca. Havia livros por todos os lados, em estantes imensas que alcançavam o teto. Livros amontoados em diversos lugares, milhares deles, pergaminhos tomavam conta de mesas iluminadas por velas em candelabros. Vohldrik atravessava aquelas pilhas de livros e pergaminhos, até que ouviu sussurros vindo de uma mesa onde parecia haver mais livros e pergaminhos do que qualquer outro lugar daquela biblioteca. Havia alguém sentado numa imponente cadeira, e ao seu redor, mais velas acesas e candelabros. Não conseguia enxergar quem era, pois a cadeira estava de costas para ele, mas Vohldrik esperava que fosse o Capitão Mark. Quanto mais se aproximava, mais nitidamente ele conseguia ouvir o que a pessoa falava. Parecia realmente estar conversando consigo mesma.
- Não acredito... A estabilização do túnel parece estar demorando mais do que o previsto... Isso não pode estar acontecendo...
O jovem guerreiro realmente não estava entendendo nada do que a pessoa dizia. Chegou bem perto, e começou a visualizar a pessoa sentada, de longos cabelos brancos, assim como sua barba. Vestido numa espécie de túnica com detalhes geométricos desenhados nas bordas, o senhor estava debruçado em alguns pergaminhos. Então, ele parou de falar, e virou-se com um olhar ao mesmo tempo revelador e enigmático na direção de Vohldrik:
- Aí está você. Esperei bastante pela sua vinda. – disse o Capitão Mark com uma voz calma e mansa. Ah, não se incomode comigo, eu costumo falar sozinho e falar demais. É uma espécie de passatempo sem fim pra mim, que agora foi quebrado pela sua chegada.
- Você me esperava? O Agente Cox, por acaso, avisou você que eu viria até aqui? – perguntou Vohldrik, meu surpreso.
- Cox? Você conhece aquele “tratante”? – o Capitão levantou-se sem pressa, esboçando um leve sorriso quase escondido naquela imensa barba branca. – Não se preocupe. Cox não me avisou de sua vinda.
- Então você sabia que eu estava vindo?
- Meu jovem, não tenho muito que lhe contar, e algumas coisas que sei não é permitido contar.
- Eu me chamo Vohldrik, e vim aqui em busca de...
- Eu sei, eu sei. Você veio em busca de respostas e possíveis esclarecimentos a respeito dos desaparecimentos ocorridos por toda Nevareth.
Vohldrik estava meio atônito com aquela conversa, e com a maneira como o Capitão falava, como se já soubesse de todos os acontecimentos com certa antecedência.
- Eu sei que você deve estar se perguntando como eu realmente sei tudo isso. Saiba que, apesar de algumas vezes a gente considerar a possibilidade de se tratar de algum tipo de clarividência, tais conclusões reveladoras nada mais são do que prováveis exercícios da lógica e dedução baseados em fatos.
Vohldrik permaneceu calado, com um olhar quase hipnótico, atento ao que o Capitão Mark lhe dizia, buscando entender tudo aquilo que lhe parecia, a princípio, tão estranho.
- Não é mistério nenhum que quase todos por toda Nevareth estão buscando respostas para o que vem ocorrendo já há alguns anos. São fatos que até hoje estão sem quaisquer explicações plausíveis.
- Eu vim aqui realmente com esperanças de que o senhor pudesse me dar algum esclarecimento sobre esses desaparecimentos.
- A respeito dos desaparecidos, o que realmente até hoje se sabe é que enquanto eles estiverem vivos, não terão permissão para retornar. E de acordo com todas as informações que consegui reunir, presumo que o paradeiro dos desaparecidos tem uma relação direta com o estranho demônio.
- Que demônio? – questionou Vohldrik.
- Quem é ele? Sua identidade em breve será revelada. – O Capitão Mark foi breve em sua resposta. – Como eu havia lhe dito antes, meu jovem, algumas coisas não são permitidas serem reveladas.
- O Oficial Dunhike, de uma das principais cidades do condado daqui do Deserto da Lamentação, me explicou que os desaparecimentos estão afetando um grande número de pessoas e perturbando a rotina de todas as colônias.
- De fato, tudo isso vem desestabilizando nossas rotinas cada vez mais. Eu soube, da parte de Dunhike, que muitos jovens guerreiros iniciantes foram convocados a ajudar nas comissões militares de investigação, mas nada de concreto foi descoberto até o momento. Nem mesmo as buscas minuciosas nos covis dos monstros teve resultado satisfatório.
O Capitão Mark dirigiu-se até uma estante próxima e agarrou um pergaminho com cuidado, desenrolou sobre uma mesa e conferiu algumas informações contidas nele, na verdade anotações feitas por ele há algum tempo. Passava o dedo em cada linha escrita, e seus olhos percorriam as palavras com atenção extrema.
- Na verdade, o Mago Negro do Exército Mercenário, que desapareceu junto com as pessoas há algum tempo, tem nos provocado certa suspeita, mas nada pode ser feito, pois ele desapareceu sem deixar qualquer vestígio.
- O Exército Mercenário poderia estar envolvido nisso? – questionou Vohldrik.
- Alguns indícios levam a crer que sim, mas nada que possa ser realmente comprovado. – o Capitão Mark retornou à estante e pegou outro pergaminho, desenrolando-o em seguida sobre o outro já aberto na mesa. – Também colhi informações de do Oficial Schuteberk, de que os grupos enviados no Continente Pastur para investigar os covis dos troglos, dentro da Selva Vermelha, dizem ter visto um grupo de pagãos sempre presentes em muitos locais dos desaparecimentos. Esses pagãos ultimamente aumentaram muito dentro do continente. Mesmo que eles sejam colocados como suspeitos, sem evidências claras, não podemos tomar nenhuma medida drástica. Mesmo que as punições pudessem ser impostas, na verdade seria muito difícil aplicá-las, considerando que esses pagãos são um grupo muito fechado. Sendo assim, os casos permanecem em aberto sem nenhuma solução.
- É muito frustrante saber que nada podemos fazer. Saber que não podemos rever nossos familiares e nem ao menos descobrir o que ocorreu realmente com eles.
- Você também teve parentes desaparecidos, suponho.
- Sim. Meus pais sumiram quando eu e meu irmão ainda éramos crianças. Eu devia ter uns 6 anos, e meu irmão, 10. E mesmo depois de 11 anos, a gente ainda tem esperanças de que possamos saber o que aconteceu com eles, se eles ainda estão vivos em algum lugar.
- Assim como você e seu irmão, muitos alimentam a esperança em rever os parentes e amigos desaparecidos. Os familiares dos membros das equipes de resgate que desapareceram vão todos os dias ao posto do Oficial expressarem sua dor. Considerando que a situação é de aflição, a frustração é incomparável, sendo que não existe sequer uma pista concreta.
- Eu vim aqui na tentativa de encontrar novas respostas. Eu queria muito poder ter boas notícias para meu irmão, e fazê-lo alegrar-se novamente, fazer ele sorrir com boas novas. – Vohldrik fez uma pausa e lembrou-se que seu irmão conhecia o capitão – Meu irmão conhece você, e chegou até a conversar contigo.
O Capitão Mark permaneceu debruçado sobre os pergaminhos, mas ainda assim, levantou os olhos com um ar questionador em direção ao jovem guerreiro.
- Quem é o seu irmão?
- Mehldrik, afilhado do Oficial Henkoff, do condado de Tundra Infame. Henkoff também é meu padrinho.
O Capitão endireitou-se, fechando os pergaminhos.
- Mehldrik? Eu me recordo dele. Questionador, cético, não aceitou muito bem as explicações que lhe dei na época. Então você é afilhado do Oficial Henkoff. E parece também ser muito jovem para já ter se tornado um Guerreiro conhecedor das técnicas básicas da Força Arcana. – Mark caminhou lentamente em direção a Vohldrik, observando-o atentamente. – E mesmo assim, parece possuir uma força descomunal dentro de si, que ainda não se manifestou em toda sua plenitude. Sem dúvida, seu poder é fabuloso e você mesmo o desconhece ainda.
- Tudo o que aprendi até o momento, devo aos meus instrutores, e principalmente ao Instrutor O’Conner, um grande mestre e conhecedor profundo das técnicas da Força Arcana.
- E pelo visto, ele tem sido um ótimo mestre para seu jovem discípulo. Entretanto, esteja ciente de seu incrível futuro. A hora da estrela do destino, que definirá a sobrevivência de toda a Nevareth, é iminente. Você precisa despertar todas as suas habilidades como Guerreiro, se quiser seguir em frente com essa sua jornada de aprendizado. Você terá enormes responsabilidades pela frente, e muitos dependerão da força de sua espada para encontrarem a paz e a liberdade.
Vohldrik ficou absorto por aquelas palavras proferidas pelo Capitão Mark, deixando escapar de seu rosto uma leve expressão pensativa, como se tentando entender tudo o que aquele senhor de longas barbas brancas havia lhe dito. Foi quando um barulho, vindo da portas por onde havia passado há pouco, chamou a atenção do Capitão Mark, assim como a sua também. Alguém adentrava o recinto de maneira nervosa e um pouco ofegante.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Capitulo IV

Não era o momento mais apropriado para criar estratégias de combate e não havia tempo suficiente para raciocinar muito sobre o que deveria ser feito. Mehldrik sabia que ele e Hevelin estavam em menor número naquele combate, e num rápido lance de olhar, havia contado 15 membros da Guilda ali diante deles. E parece que o clima naquela região gostava de contrariar Mehldrik, pois justamente no momento em que eles bateram de frente com aqueles indivíduos pouco amistosos, a neve voltou a cair, e desta vez com mais intensidade. Mehldrik mais uma vez amaldiçoou aquele clima, o que fez com que Hevelin olhasse para ele com uma expressão de certo espanto, apesar de ainda estar bastante revoltada com a breve discussão que tiveram.
O bando estava muito bem armado, todos com suas espadas, katanas, montantes empunhadas e prontas para dilacerar os inimigos. Não importava a estatura, e entre gordos e troncudos, e magros e esbeltos, todos ali tinham um objetivo em comum, o de simplesmente propagar o pânico e o terror por onde passassem, deixando sempre um rastro cego de destruição e dor. Alguém que estava à frente da guilda, com jeito de líder e olhar serenamente psicótico soltou uma frase horripilante, fazendo com que Mehldrik estreitasse seu olhar numa expressão de raiva:
- Vamos ter carne fresca hoje. Arranquem as entranhas deles!
Dito isso, todos do bando partiram para cima de Mehldrik e Hevelin aos gritos, berros, empunhando ferozmente suas espadas e montantes.
- Rápido, Hevelin, vamos nos separar – disse Mehldrik rapidamente para Hevelin quase como um sussurro. Cada um foi para um lado, correndo por entre as árvores e arbustos, sendo seguido pelos membros da Guilda, que se dividiram para persegui-los. Hevelin agarrou com firmeza e agilidade suas duas katanas, enquanto Mehldrik tirava de seu alforje seu orbe e o invocava em seu escudo astral, ao mesmo tempo em que empunhava sua katana com determinação. Ele percebeu que daria tempo de se livrar dos três oponentes que corriam rapidamente em sua direção, e então recuou tão rapidamente quanto pôde por entre duas árvores, para em seguida mirar seu escudo em um deles e soltar um projétil congelante, fazendo paralisar por alguns momentos. Isso lhe deu tempo de se armar para o próximo golpe contra os outros dois, e o fez rapidamente, soltando um golpe circular com sua katana e derrubando-os no chão. O outro havia conseguido se livrar daquele golpe congelante e partiu novamente para cima de Mehldrik, que dessa vez soltou um projétil relâmpago, sendo dessa vez fatal para o infeliz, caindo já morto. Tudo acontecia muito rápido, e num piscar de olhos, Mehldrik partiu para o ataque utilizando a técnica da guilhotina, lançando-se ao ar em rodopios rápidos e descendo ferozmente com sua katana sobre os inimigos à sua frente. Foi um golpe único e sangrento, porém conseguiu apenas acertar um dos seus perseguidores. Decidiu usar o mesmo golpe, e então promoveu grandes saltos laterais pelos troncos das árvores, e voltou-se contra o último que estava ali à sua frente, desferindo o mesmo golpe de guilhotina. Não teve tempo de respirar, e mais quatro lhe cercaram. E assim como fizera com os pantrocornes, evocou as espadas arcanas na técnica das espadas do julgamento e dilacerou com todos ao seu redor.
Enquanto Mehldrik decidiu aqueles combates contra os ladrões em seu favor, Hevelin empunhava com agilidade suas katanas, mostrando toda sua rapidez numa dança mortífera. Observou dois ladrões que vinham correndo mais próximos de seus passos, e então virou-se numa espiral fantasma, e com apenas esse golpe atingiu de maneira arrasadora os oponentes que estavam a alguns metros. Os demais membros da guilda ameaçadora ainda estavam mais atrás, e ela viu a oportunidade para concentrar-se na técnica da lâmina intensa, que consistia em aumentar a energia potencial de suas armas, de forma a aumentar o efeito de suas técnicas de espada. Então, mudou sua tática imprevisivelmente e partiu pra cima de um dos inimigos, um grandalhão que empunhava uma enorme montante de aço, e desferiu nele um choque arcano, um ataque extremamente ágil que se assemelhava a correr velozmente e atingir o inimigo com uma joelhada fatal. Agachou-se para livrar do golpe de uma afiada daikatana, e então desferiu outra espiral fantasma contra todos à sua volta. Para sua surpresa, ainda havia dois de pé, que levantaram suas espadas contra ela. Hevelin, com sua agilidade potencializada, atacou usando a técnica do Corte da Lua Gêmea, desferindo dois golpes cruzados das suas katanas gêmeas, levando os derradeiros inimigos à morte definitiva. Foram sequências rápidas e eletrizantes, onde Mehldrik e Hevelin acabaram com aquele bando em questão de minutos. Ao final, os dois, ofegantes e um pouco cansados por causa dos golpes que exigiam muito de suas técnicas e força arcana, olhavam aqueles corpos estirados na neve, ao mesmo tempo em que se entreolhavam calados, a uma distância relativa um do outro.
Passado todo o furor e perigo daquele combate, Mehldrik lentamente foi se aproximando de Hevelin, que já havia recolhido as katanas mais uma vez, e já não mais se preocupava com a breve discussão que tivera há pouco. Agora, o foco de seus pensamentos era outro. Ela estava intrigada com aquele bando da Guilda que encontraram.
- Será que eles estavam me seguindo? – questionou para Mehldrik, pensativa. – Ou será que apenas tivemos a infelicidade de esbarrar com eles aqui nas montanhas?
- É uma boa pergunta. – respondeu Mehldrik. – Ou a Guilda podia já saber da sua localização e então enviou esse bando para impedir que você descubra onde eles possam estar, pois isso levaria a desvendar o local onde as mercadorias roubadas estariam.
- Isso nos dá uma certeza. Estamos próximos de encontrar o esconderijo, e pelas instruções que Henkoff me passou, parece que ele realmente está certo quanto ao local onde eles estejam escondendo o que roubaram.
- E pelo visto, isso também me dá a certeza de que devo estar próximo de meu destino também. – disse Mehldrik, enquanto revistava um dos ladrões mortos.
- A propósito, agora fiquei intrigada com outra coisa. O que você faz aqui caminhando por estas montanhas? Você não chegou a me dizer, apesar de ter me dito coisas das quais não gostei nem um pouco.
Mehldrik realmente começava a considerar Hevelin um tanto quanto desaforada e sem tolerância nenhuma para críticas, e isso não era nada bom para duas pessoas que acabaram de se conhecer. Ele relutou um pouco em responder, mas decidiu explicar, enquanto procurava possíveis pistas entre aqueles ladrões que pudessem lhe indicar o paradeiro da pessoa que estava ali para resgatar.
- Estou aqui em uma missão também, a pedido de um amigo meu do condado. Vim para encontrar e resgatar alguém chamado Skaild, que está sendo ameaçado pela Guilda dos Ladrões.
Hevelin fez uma expressão sutilmente questionadora, levantando um de suas sobrancelhas e continuando o interrogatório.
- Em que esse Skaild se meteu para ser ameaçado pela Guilda?
- Dívidas não pagas, pelo que me foi explicado. E ele não tem como pagar, então a Guilda está procurando ele.
- Irão matar ele?
- Não, a intenção deles é outra. Eles pretendem capturar Skaild e vender ele ao Exército Mercenário. Assim eles acabam lucrando, e Skaild quita as dívidas que tem com o bando.
- Então, de uma forma ou de outra, acabaríamos nos encontrando de qualquer jeito.
- Como assim? – indagou Mehldrik, dessa vez olhando para Hevelin.
- Se você está indo resgatar alguém jurado de morte pela Guilda, e eu estou procurando o local aonde essa mesma Guilda vêm escondendo as mercadorias roubadas, logo... – Hevelin fez uma pausa proposital, esperando que Mehldrik entendesse o raciocínio e completasse a frase. Ele a encarou por um momento, como se buscando encaixar peças de um quebra-cabeça proposto.
- Logo, você considera que Skaild já tenha sido capturado e esteja nesse mesmo local das mercadorias roubadas.
- Claro. Não acredito que esse Skaild tenha conseguido se esconder por muito tempo. Esse bando não seria tão estúpido assim, a ponto de deixar alguém escapar. Eu acredito que ele já tenha sido capturado.
Por um instante, Mehldrik sentiu um ligeiro calafrio na espinha, e não era causado pelas baixas temperaturas das montanhas. Poderia Hevelin estar certa em suas hipóteses? Será que ele falhou em sua missão de resgatar Skaild e levá-lo a salvo de volta para o Condado? O que diria seu amigo Simon se ele retornasse com tristes notícias? Mehldrik olhou novamente para Hevelin, que insinuava um ligeiro sorriso de canto de lábio, e ligeiramente pensou em outras possibilidades. Hevelin poderia estar apenas jogando com hipóteses, com uma cínica intenção de afirmar subjetivamente que ele também cometia erros e poderia desta forma ter falhado em sua missão.
- O que você acha? – indagou Hevelin, ainda com aquele leve sorriso de canto de lábio, e com uma das mãos na cintura.
Mehldrik evitou dar uma resposta que iniciasse uma nova discussão sem necessidade, pois provavelmente poderia estar equivocado com seus pensamentos naquele momento. Começou a analisar a possibilidade de Skaild já ter sido capturado pela Guilda, e concluiu rapidamente que essa possibilidade apenas mostrava que ele e Hevelin acabavam tendo o mesmo destino naquele momento.
- Se, de acordo com sua hipótese, Skaild já tenha sido capturado, isso significa que ele possa estar nesse esconderijo, o mesmo esconderijo que você está indo investigar, segundo instruções de Henkoff.
- Isso mesmo.
- Ou seja, nesse caso, estaríamos eu e você indo ao mesmo lugar, apesar de nossas missões serem distintas.
- Exatamente.
- E o que você sugere nesse caso? – questionou Mehldrik, quase se arrependendo de ter feito essa pergunta.
- Eu sugiro que a gente esqueça aquela discussão que aconteceu entre a gente, e nos unir no mesmo propósito, já que possivelmente estejamos indo os dois para o mesmo destino encontrar o mesmo bando.
Mehldrik hesitou um pouco antes de responder.
- Tudo bem, eu aceito sua sugestão. Agora eu acho melhor a gente realmente adiantar nossa jornada, pois está começando a nevar com mais intensidade, e esse tempo poderá nos atrasar mais ainda.
Hevelin consentiu com a cabeça, e ambos recomeçaram suas caminhadas, dessa vez juntos, buscando alcançar um destino em comum. Desceram a encosta da montanha, deixando para trás diversos corpos inertes e sem vida, sendo levemente enterrados pela nevasca que caía.
Aquele bando de ladrões já não seria ameaça para mais ninguém.

Capitulo III

Hevelin estava realmente inconformada com tudo aquilo que aconteceu ali, naquele penhasco. Não admitia errar sob hipótese alguma, e aquele confronto com aqueles gorilas mostrou algumas de suas falhas que poderiam muito bem acontecer em possíveis combates futuros. Como duelista que era, ela bem sabia que tinha muitas limitações em sua força física, e por isso mesmo aprendera que todo duelista buscava maximizar as técnicas físicas usando a Força Arcana, tudo baseado mais em velocidade e agilidade. Entretanto, naquele momento, ela sabia que tinha cometido uma falha enorme em querer combater aqueles gorilas tentando usar força física. Foi um erro de sua parte, e por isso Hevelin mostrava aquele semblante sério, aquele olhar inerte. Não mais socava a neve com murros. Seus punhos haviam se cerrado energicamente. Mehldrik insistiu na pergunta:
- Você está bem? – Mehldrik mantinha certa distância, e apenas buscava obter de Hevelin qualquer resposta.
- Estou bem, não se preocupe. – respondeu Hevelin de maneira um tanto áspera.
- O que uma pessoa como você faz em um lugar tão ermo e distante como essas montanhas? – perguntou Mehldrik de maneira despretensiosa, enquanto guardava seu orbe em seu alforje.
- Estou em uma missão...
- Olha, eu tenho aqui comigo um pouco de carne de pantrocorne, se você estiver com...
- Não tenho fome. – interrompeu Hevelin, sem deixar que Mehldrik terminasse sua frase.
- Tudo bem. – Mehldrik decidiu não continuar mais com o diálogo, pois percebeu que Hevelin não estava em seu melhor momento para trocar palavras com outra pessoa.
Hevelin aparentemente não estava disposta a muita conversa. Aquela duelista, de longos cabelos negros e pele morena levemente bronzeada pelo sol intenso de desertos distantes, mostrava ter um temperamento forte e ser um pouco arredia em determinados momentos. Permaneceram durante um certo tempo ali, sentados, em silêncio, enquanto a nevasca havia dado uma trégua e os ventos diminuído de intensidade. Mehldrik então decidiu levantar e preparar-se para seguir sua jornada, pois começou a sentir certo arrependimento em ter ajudado aquela duelista, que nem ao menos disse seu nome ou sequer agradeceu por tê-la salvo. Aprumou-se e estava prestes a descer a colina quando Hevelin resolveu enfim falar.
- Ei, você!... Olha, me desculpe por eu ter sido tão rude, é que existem momentos que me irritam profundamente, e eu sinto uma raiva intensa...
- Tudo bem, quanto a isso, não se preocupe. Essas coisas acontecem, e ninguém é perfeito o suficiente que já não tenha cometidos seus erros de vez em quando.
- Eu sei... – Hevelin parecia estar procurando as palavras certas para explicar o que pensava sobre aquilo tudo que aconteceu. – Mas é que essa situação toda, esses gorilas me atacando, diabos! Eu quase morri nesse penhasco, e se você não tivesse aparecido, eu nem sei o que teria acontecido comigo. Não é possível! Eu devo ter feito algo errado, como eu pude deixar aqueles monstros me atacarem com tanta facilidade! Eu odeio quando eu cometo erros! – Hevelin parecia estar ficando nervosa novamente.
- Calma. Como eu já te disse, todos somos passíveis de errar. Foi uma situação ocasional, e tenho certeza de que da próxima vez você estará melhor preparada para enfrentar outras ameaças. – dito isso, Mehldrik percebeu que Hevelin estava se acalmando. – Olha, como eu te falei antes, eu tenho um pedaço de carne de pantrocorne aqui. Caso esteja com fome, posso assar um pouco para a gente.
Hevelin dessa vez consentiu afirmativamente com a cabeça, considerando agora a possibilidade de fazer uma breve pausa em sua caminhada para descansar um pouco. E apesar de ter feito o convite, Mehldrik ainda considerava todos aqueles contratempos ocorrido fatores que poderiam complicar sua missão de encontrar e resgatar Skaild, então não podia se dar ao luxo de fazer paradas imprevistas, e decididamente aquela era uma parada não programada por ele. Tratou então de ser ágil e encontrou ali perto um lugar onde poderiam descansar e fazer uma pausa em suas jornadas. Em pouco tempo, a carne já crepitava sobre as chamas de uma fogueira, e o calor da mesma aquecia os dois jovens guerreiros. E logo ambos, Melhdrik e Hevelin, já haviam se apresentado um ao outro, e agora buscavam saber um pouco mais sobre ambos.
- Então quer dizer que você veio do Continente de Huan. E o que realmente faz você perdida aqui nessas regiões geladas de Tundra Infame?
- Inicialmente, eu fui solicitada pelo Oficial Dunhike, do condado do Deserto da Lamentação, para investigar uma série de desaparecimentos que tem ocorrido durante muito tempo em diversos continentes de Nevareth. Já estive em outro condado há algum tempo atrás no Continente de Pastur, onde ajudei nas buscas pelos desaparecidos. Até os próprios grupos de expedição e busca começaram a desaparecer de maneira estranha. Eu investiguei os locais dos desaparecimentos, e as únicas pistas que foram encontradas apenas apontavam para o fato de que ocorreram combates e resistência por parte das vítimas, mas nada explicava os motivos reais dos desaparecimentos.
- Eu sei perfeitamente sobre esses desaparecimentos estranhos. Meus pais sumiram misteriosamente quando eu era criança e até hoje nunca foram encontrados. – Mehldrik sentiu um gosto meio amargo na boca ao contar um pouco de sua história de vida, mesmo que em poucas palavras. Raramente ele contava a alguém sobre sua vida ou sobre o desaparecimento de seus pais. E esse era um daqueles raros momentos.
- Sinto muito pela sua família, Mehldrik...
- Eu já me acostumei há muito tempo com a situação, e tento conviver com isso, apesar de nunca terem conseguido descobrir como e porque eles desapareçam. E você está aqui em Tundra Infame tentando ajudar a desvendar essa situação? Pergunto isso porque continuo achando estranho ter encontrado somente você aqui nas montanhas.
- Como eu havia dito, inicialmente vim para cá a pedido do Oficial Dunhike para investigar os desaparecimentos ocorridos aqui no continente de Midreth e colher mais pistas e informações que eu pudesse sobre esses desaparecimentos. Até agora, tudo o que temos foi minuciosamente pesquisado e examinado pelo Capitão Mark.
- Capitão Mark? – perguntou Mehldrik, com certo espanto.
- Sim, isso mesmo. Você o conhece?
- Sim, eu o conheci quando ele esteve aqui numa reunião com os líderes da região sobre os desaparecimentos. Cheguei a conversar com ele um pouco, só que ele não disse as respostas que eu queria ouvir, apenas me explicou que sobre os desaparecidos, enquanto estiverem vivos, nunca poderão voltar e que o paradeiro deles tem possível relação com um demônio estranho que em breve se revelará. Achei as explicações dele tão misteriosas e malucas quanto os desaparecimentos. Eu não acredito em nenhuma explicação dele.
- Mas acredite, Mehldrik, o Capitão Mark é um exímio especialista em monstros, e todos em minha terra respeitam ele, que é quase como um líder local. Eu o visitei por diversas vezes em sua casa, uma habitação perdida no meio do deserto, construída há tempos na curva de uma estrada que fica há alguns quilômetros de um secular cemitério. Ele também me disse sobre aqueles que desapareçam e que não poderão mais voltar. E me alertou sobre os ventos do caos que estão soprando, o caos que chama por sangue e sobre os heróis que possuem esse sangue. Segundo ele próprio me disse, agora, nos céus de Nevareth, as estrelas dos heróis estão bem no alto e se movem em direção aos seus próprios caminhos.
- Ele me disse algo parecido também, e também me disse com um olhar enigmático que em breve me veria novamente. Aquele olhar dele chegou a me apavorar um pouco, mas eu sou descrente por tudo o que ele me disse. Não consigo aceitar as idéias dele, simplesmente não consigo aceitar, é absurdo.
Mehldrik estava se expondo um pouco mais com suas palavras. A convicção dele em não querer acreditar nas explicações do Capitão Mark residia justamente no fato de que ele ainda tinha esperanças de encontrar seus pais, de poder revê-los, poder abraçá-los. Logo, se o Capitão Mark dizia que aqueles que se foram jamais poderão voltar, Mehldrik renegava essa teoria de maneira veemente. Hevelin achou melhor não aprofundar muito aquela discussão, pois começou a perceber que as opiniões de Mehldrik a respeito do Capitão Mark eram diferentes das suas. Então prosseguiu cautelosamente com suas explicações a respeito de sua missão.
- Quando eu cheguei aqui no continente, eu fui informada de que a Guilda dos Ladrões havia debandado para estas regiões, e que após as autoridades descobrirem isso, vários tipos de crimes começaram a ocorrer por aqui, deixando várias comunidades temerosas com a situação.
- Esses malditos têm agido com certa freqüência realmente. – acrescentou Mehldrik - Um grupo de comerciantes que chegou a Tundra Infame recentemente está sendo vitimados por ataques repentinos, e as mercadorias que eles roubam estão sendo armazenadas em algum local das Montanhas de Vahour. E segundo o que se sabe, um homem chamado Kashu estaria liderando esses roubos, com a clara intenção de desestabilizar a economia da região e do Porto de Hebrat, um dos mais movimentados em atividades comerciais daqui da região.
- Antes de sair em missão, eu soube que o Porto havia paralisado suas atividades devido aos roubos, que se tornaram mais constantes ainda. E foi por causa dessa situação de caos provocada pela Guilda dos Ladrões que o Oficial Henkoff, daqui do condado de Tundra Infame, solicitou minha ajuda para tentar descobrir onde seria o possível local onde as mercadorias estariam sendo escondidas.
- O Oficial Henkoff enviou você para esta missão? – indagou Mehldrik, com certo espanto.
- Sim. Por que?
- Por nada. Henkoff é meu padrinho, ele que me acolheu e criou eu e meu irmão depois que meus pais desapareceram. – explicou Mehldrik de maneira breve, dando sinal de que não queria realmente expor muito sobre sua vida pessoal. Achava que já tinha contado muito além do necessário.
- Henkoff é seu padrinho. Que coincidência. Mas porque você fez essa cara de espanto quando eu disse que ele me enviou nessa missão?
- Não fiquei espantado. É que pouco antes de sair do condado, meu padrinho havia me explicado que possivelmente reuniria um grupo de busca para investigar esses roubos e tentar descobrir o local onde as mercadorias estariam sendo escondidas. Eu só nunca imaginaria que, ao invés de um grupo de busca equipado, ele resolvesse enviar apenas você.
Agora o olhar de espanto partia do rosto de Hevelin. Provavelmente ela tenha entendido errado as palavras de Mehldrik, ou ele possivelmente tenha se expressado mal, mas naquele momento, ela se sentiu um pouco ofendida com o que ele havia dito. E não demorou a retrucar a afirmação de Mehldrik.
- O que você quer dizer com isso? Que eu não tenho capacidade para realizar esta missão? Afinal de contas, quem você pensa que é para falar uma coisa dessas?
- Hevelin, você não entendeu o que eu quis dizer. – Mehldrik percebeu certo nervosismo no tom de voz de Hevelin, ao mesmo tempo em que o rosto dela assumia uma expressão de desapontamento.
- Mehldrik, eu entendi direitinho o que você quis dizer.
- Hevelin, eu disse isso pelo fato de que você havia dito que odeia cometer erros, mas ainda assim você quase morreu naquele penhasco.
- O que? – Hevelin levantou-se prontamente, agora visivelmente irritada – Agora você realmente disse tudo o que queria realmente dizer! Você quer dizer que aquilo que ocorreu no penhasco apenas serviu para mostrar que não tenho competência para cumprir essa missão, não é?
- Hevelin, eu apenas estou tentando dizer que essa missão que lhe foi confiada pode ser perigosa demais para apenas ser realizada por uma pessoa somente. Meu padrinho deveria ter enviado um grupo de investigação maior.
- Você está apenas me dizendo que não acredita que eu tenha capacidade para a missão, é isso? – esbravejou Hevelin.
- Hevelin, por favor, diminua o tom de sua voz. Você vai acabar chamando a atenção de mais animais ferozes...
- Para o inferno você e os animais ferozes! Não admito que ninguém questione minha competência para realizar as missões que me são confiadas! Não admito mesmo!
Após dizer isso, Hevelin saiu a passos rápidos por entre as árvores, sem olhar para trás. Mehldrik agora realmente começava a achar que tinha sido um tremendo erro encontrar aquela duelista em seu caminho. Ela tinha uma personalidade forte e um temperamento instável, e parecia que não gostava que lhe apontassem seus erros. Mehldrik a chamou algumas vezes, perguntando para onde ela estava indo, mas ela simplesmente o ignorava. Ela descia com certa agilidade a encosta da montanha, seguido a certa distância por Mehldrik. Em determinado momento, ela saltou uma pedra e passou por um vão entre duas rochas. Mehldrik continuou seguindo-a, fazendo o mesmo trajeto. Porém, ao seguir na direção do vão, esbarrou subitamente em Hevelin, que estava estagnada à sua frente, imóvel. Ele olhou para frente e entendeu afinal o motivo verdadeiro pelo qual Hevelin havia parado.
Eles haviam acabado de encontrar alguns guerreiros da Guilda dos Ladrões.

Capitulo II

Mehldrik passara a noite sob um vão entre as rochas, ao pé de uma colina. Havia acendido uma fogueira para se aquecer e assar parte da carne de pantrocorne zumbi que havia conseguido no dia anterior. Com o dia raiando novamente, ele acordou em meio a mais uma nevasca que cobria o céu e a terra de maneira quase uniforme. Não se sabia realmente onde terminavam as montanhas e onde o céu se iniciava. Como sempre, sua noite foi preenchida por sonhos perturbadores num sono constantemente agitado. Fazia tempo não sabia o que era dormir tranquilamente, sem pesadelos ou sobressaltos. Observou por certo tempo as cinzas da fogueira que ainda crepitava perto dele, e então começou as arrumar suas coisas. Olhou toda a paisagem ao redor, buscando uma orientação sobre a direção a seguir, e quando estava certo de seu rumo, desceu a colina acompanhando a base da montanha. Dessa vez iria evitar, de qualquer forma, as matilhas de pantrocornes zumbis e de lobos zumbis que viviam por aquelas áreas. Não podia mais perder tempo, se quisesse realmente resgatar Skaild antes que ele fosse descoberto e acabasse nas mãos do Exército Mercenário. Não queria decepcionar Simon, já que ele era um prestimoso amigo que tanto lhe ajudou com armaduras e outras vestimentas para suas jornadas, e agora era chegado o momento de retribuir tantos favores. E quando Simon pediu a ele para resgatar o amigo, Mehldrik não pensou duas vezes e aceitou a missão, apesar de estar ciente dos grandes riscos que correria em sua jornada. E, de acordo com o que Simon havia lhe contado, muito provavelmente Skaild tinha informações que poderiam ser importantes para elucidar parte do mistério do desaparecimento de pessoas que vinham ocorrendo pelos continentes de Nevareth. E para Mehldrik, isso significava descobrir o que poderia ter ocorrido com seus pais desaparecidos. Por isso, precisava agir rápido e resgatar Skaild antes que a Guilda dos Ladrões o encontrasse. Prosseguiu sua caminhada durante o decorrer do dia, e em determinado momento, sentiu um ímpeto de apressar seus passos, apesar de considerar tal atitude quase impossível de ser realizada, pela quantidade de neve ao seu redor, alcançando quase a altura de sua cintura. O frio parecia aumentar mais ainda, e então ajeitou a capa sobre sua armadura de ferro e cobriu seu rosto com o capuz. Seus dedos começaram a formigar, e pareciam querer ficar dormentes. Decidiu diminuir a caminhada e mudou sua trajetória, iniciando uma subida pela encosta de uma montanha. Segurava-se em troncos e galhos dos pinheiros, enquanto seus pés tentavam vencer os centímetros de neve que quase escondiam suas pernas. Tinha alcançado já uma altura considerável naquela peregrinação colina acima quando ouviu sons guturais vindo de algum lugar ali próximo. Eram sons que se assemelhavam a urros enraivecidos, e logo percebeu que se tratava de um grupo de gorilas brancos. Mehldrik sabia que encontrar outra comunidade de animais ferozes acabaria atrasando ainda mais sua missão, porém ele parou atento e continuou ouvindo, apesar daqueles ventos gelados das montanhas não ajudarem muito. Estava ouvindo algo mais do que apenas os urros daqueles animais enfurecidos. Ficou surpreso quando seus ouvidos perceberam sons metálicos, parecia com duas espadas em choques de batalhas. Sabia que poderia mais tarde se arrepender daquela sua atitude, mas precisava descobrir o que estava acontecendo ali perto. Imaginou logo que poderia se tratar de membros da Guilda dos Ladrões, que pudessem estar o seguindo com o objetivo de descobrir onde Skaild poderia estar escondido. Aproximou-se do local dos urros guturais, e a principio conseguia apenas enxergar um vulto em meio àquela nevasca. Um vulto que parecia estar lutando com um bando de gorilas brancos. Melhdrik sentia dificuldade em conseguir enxergar, chegou até a sentir certa agonia em só ver tanta neve caindo daquele céu branco. À medida que se aproximava, a cena ia se descortinando à sua frente. Alguém estava realmente lutando com aqueles gorilas enormes próximo de um penhasco, e para sua surpresa, esse alguém lutava empunhando duas espadas, e pareciam ser duas katanas em suas mãos. A pessoa se movimentava de maneira veloz, rápida, tão rápida quando aqueles ventos cortantes das montanhas, e aquelas espadas em suas mãos pareciam dançar em movimentos destrutivos. Tudo parecia um balé levemente sincronizado, e os gorilas tentavam se aproximar dele, mas sem conseguir. Até que dois deles atacaram ao mesmo tempo, e aquele duelista não conseguiu ser ágil o suficiente, tropeçando para trás em direção ao abismo às suas costas. Mehldrik sabia que tinha que agir rápido, e logo estava empunhando novamente seu orbe e invocando seu escudo astral, puxando sua katana e partindo para cima dos gorilas. Antes mesmo de chegar neles, arremessou seu escudo astral, atingindo em cheio um dos gigantes brancos, fazendo cair pelo precipício. Esperou seu escudo voltar para suas mãos, para em seguida soltar uma lança relampejante, ferindo outro gorila próximo. Aquela nevasca atrapalhava constantemente a visão, e aqueles malditos animais enfurecidos ainda tinham a vantagem de terem um pêlo que se confundia com a paisagem. “Maldita neve que não pára de cair!”, bradou Mehldrik, enquanto via outro gigante peludo partir em sua direção. Sabia pouco ainda sobre as técnicas da Força Arcana, mas sabia se virar muito bem com o que havia aprendido até ali. Soltou um golpe para desequilibrar seu oponente, enquanto preparou-se para atingir ele com um golpe selvagem, o que fez com que o gorila caísse já morto ao chão. Mehldrik ainda usou esse mesmo golpe para derrubar os outros dois gorilas, que também não suportaram o poder fatal de sua espada.
Após derrubar todos os gorilas e perceber que a área estava limpa e livre de perigos, Mehldrik rapidamente correu para a beira do penhasco. E para sua surpresa, aquele duelista estava ainda pendurado, segurando-se em pedras e raízes de árvores. O vento forte que soprava dificultava o resgate, mas Mehldrik não se intimidou com a gravidade da situação, e agachou-se, estendendo a mão para a pessoa que estava prestes a cair. A dificuldade maior estava em conseguir alcançá-la, e então pediu para o duelista guardar suas espadas, para que juntos pudessem reunir forças para saírem daquela situação perigosa. O pedido foi prontamente atendido, e logo em seguida ambos estavam a salvo. A nevasca havia diminuído um pouco e os dois sentaram próximos a um pinheiro, procurando recuperar o fôlego depois daquele momento de pânico. Mehldrik tirou o capuz que protegia sua cabeça e olhou para o lado meio surpreso, ao ver que o duelista, ainda sem tirar seu capuz, dava murros seguidos contra a neve fofa, como se estivesse chateado ou revoltado com o que havia acontecido. Esperou que se acalmasse, e então buscou dialogar.
- Você está bem? Está sentindo alguma coisa? Está machucado? – perguntou Mehldrik.
A pessoa permaneceu ainda meio nervosa, mas já não dava murros contra o chão. Mas a impressão que passava era a de que parecia estar bastante contrariado por tudo aquilo que aconteceu. E a surpresa maior para Mehldrik ocorreu quando finalmente aquele duelista tirou o capuz e finalmente mostrou seu rosto. Ficou meio atônito quando percebeu que não se tratava de um duelista. Não era ele, mas sim, era ela. Uma duelista.

Capitulo I

Tudo era branco ao seu redor. Há muitos dias que ele apenas enxergava aquela paisagem silenciosa e fria, envolvido em um imenso manto alvo que parecia muitas vezes querer enterrá-lo definitivamente naquelas colinas geladas, ermas e distantes. Seus passos afundavam na neve, dificultando sua jornada solitária entre as montanhas que cercavam toda a região de Tundra Infame. A pequena cidade que o acolhera há alguns dias havia ficado para trás, distante, e agora ele realmente começava a sentir falta do calor aconchegante da pequena taberna, onde havia passado algumas noites antes de iniciar sua caminhada. Apesar de estar bem agasalhado, o vento gelado das montanhas era forte e ameaçador, e parecia até mesmo querer congelar seus pensamentos. Talvez fosse até um alívio se seus pensamentos fossem congelados por algum tempo, pois somente assim ele ficaria livre de tantos tormentos e pesadelos que o perturbavam há muitas noites, tantas noites que ele nem sabia realmente quantas. Em alguns momentos ele podia jurar que ainda podia ouvir o repicar do pequeno sino em frente a casa onde morava com sua família, aquele mesmo sino que sua mãe sempre tocava para chamar os filhos para as refeições sagradas. Também parecia estar sempre ouvindo a voz de seu pai, de rosto rosado e sorriso quase escondido por entre a barba, durante a janta, ao conversar com todos à mesa. Todas essas lembranças estavam agora perdidas em meio a outras, mais tenebrosas e pertubadoras, todas formando um redemoinho que algumas vezes o deixava com uma sensação de torpor e tontura.
Sentiu um leve aperto no peito e momentaneamente parou sua caminhada. Apoiou-se no tronco de um pinheiro, enquanto buscava novo fôlego para continuar andando. Começava a sentir seus dedos congelarem um pouco, e talvez aquela dor no peito fosse apenas reflexo de seu cansaço por estar caminhando por tantos dias. Mesmo diante de tantas adversidades, algo dentro de seu coração era muito forte e o impulsionava a seguir sempre adiante, e nunca desistir de seus objetivos. Precisava encontrar respostas para as fatalidades que aconteceram em sua vida. Não havia mais nenhum outro objetivo em sua vida a não ser encontrar as malditas respostas para as perguntas que insistiam em permanecer martelando dentro de sua cabeça, um som insistente e que se confundia muitas vezes com o som longínquo daquele pequeno sino que sua mãe tocava todos os dias. Ele precisava saber o que havia acontecido com seus pais, porque eles haviam desaparecido de maneira tão repentina e sem deixar qualquer vestígio. Ele não conseguia entender como o mundo era tão injusto e cruel com ele e com seu irmão, duas crianças abandonadas à própria sorte em uma cabana nas montanhas congeladas de Tundra Infame. Acabou sendo criado pelo seu padrinho, o Oficial Henkoff, a pessoa mais influente e importante do condado de Tundra Infame, a quem ele devia realmente toda a educação recebida. Henkoff soube direcioná-lo bem nos Estudos das Forças Arcanas, fazendo dele um dos guardiões mais temidos da região. Mesmo sendo acolhido ele e seu irmão mais novo por uma família importante da região, ele ainda sentia-se incompleto, com um vazio perturbador por dentro, e sedento por respostas a todas as suas mais profundas indagações. O desaparecimento de seus pais era algo que ele precisava desvendar, para que ele pudesse de uma vez por todas acalmar seu coração inquieto.
Os pensamentos de Mehldrik foram subitamente cortados por sons ameaçadores que se aproximavam dele de maneira sorrateira. Levantou-se rápido e virou-se a tempo de ver uma matilha de pantrocornes zumbis aproximar-se de forma soturna, cercando-o com olhares penetrantes e rosnando ferozmente, mostrando suas presas pontiagudas. Aqueles pantrocornes zumbis pareciam realmente famintos e prontos a destroçar sua pele numa suculenta refeição. Mal teve tempo de pensar, e assim que conseguiu tirar seu orbe de topázio de seu alforje de couro e invocá-lo num escudo astral, dois pantrocornes partiram ao seu encontro em pulos ágeis, mesmo sobre toda aquela neve que cobria as montanhas. Mehldrik não pensou duas vezes e soltou projéteis de ventos de seu escudo contra os animais, o que lhe deu certo tempo de puxar sua katana de titânio e desferir golpes agonizantes e certeiros nos dois. Outros dois pantrocornes decidiram atacar, pulando em cima de Mehldrik, que mesmo embaixo de suas garras, conseguiu empurrá-los para longe, desvencilhando-se de uma possível morte com um salto ágil para trás, recompondo-se a tempo de soltar um corte circular, atingindo de uma só vez aos dois pantrocornes que o atacaram. Havia mais cinco, e Mehldrik queria livrar-se daquelas ameaças o quanto antes, pois eles estavam realmente atrapalhando sua jornada. Concentrou-se rapidamente, e em seguida transferiu a força arcana amplificada de seu escudo para a katana, derrubando os pantrocornes ao seu redor. Então levantou sua katana e invocou as espadas do julgamento, chamando as espadas arcanas e desferindo golpes letais nos animais ferozes, caindo todos mortos ao seu redor.
Ainda um pouco ofegante, olhou em torno de si e viu todos aqueles pantrocornes mortos. Guardou sua katana e seu escudo astral, e pegou uma pequena adaga, com a qual arrancou um pouco da carne de um dos animais. Seria a sua refeição daquele dia frio e nebuloso. Depois de cortar uma boa fatia, enrolou o pedaço de carne em um pano e colocou em seu alforje. Olhou mais uma vez os animais mortos, ajeitou sua bolsa às costas, e continuou sua caminhada por entre as montanhas congeladas de Tundra Infame. Precisava logo chegar ao seu destino.